OS TRÊS CÃES | CONTOS DA CAROCHINHA #1
OS TRÊS CÃES
Um pastor tinha dois filhos - um rapaz e uma rapariga. Quando chegou a hora de sua morte, chamou as duas crianças para junto de si, e disse-lhes:
- "Não tenho nada para lhes deixar senão esta choupana e três carneiros. Dividam, amistosamente a pequena herança, de modo que não despertem ciúmes nem inveja".
Depois, fechou os olhos, e expirou.
No dia seguinte, o rapaz, que se chamava Henrique, disse à irmã:
- "Que prefere você? A choupana ou os carneiros?"
- "Prefiro a choupana", responde a mocinha.
- "Como quiser. Então, ficarei com os carneiros, e vou por este mundo de Cristo em fora, tentar fortuna. Nasci num domingo, e dizem que isso dá felicidade."
Partiu . Durante a viagem, passou dias angustiosos, e sofreu muitíssimas privações.
Um dia, em que estava sentado à beira do caminho, desanimado, em vista do mau sucesso das suas tentativas, e não sabendo para onde se dirigir, viu encaminhar-se para o lugar onde se achava, um homem, acompanhado de três enormes cães, que lhe disse:
- "O senhor tem três carneiros muito bonitos. Quer trocá-los pelos meus três cães?"
Apesar da sua tristeza, Henrique pôs-se a rir e respondeu:
- "Ficaria embaraçado se aceitasse sua proposta. Os meus três carneiros cortam por si mesmo a erva de que têm necessidade, ao passo que eu seria obrigado a sustentar esses três animais, e nada tenho.
- "Ah! É que não sabe", retorquiu o desconhecido, "que esses três cães são verdadeiramente maravilhosos. O senhor não só não terá precisão de se ocupar da subsistência deles, como eles tratarão da sua e de tudo quanto necessitar. O mais pequenino chama-se Provedor, o segundo Despedaçador, e o maior de todos Quebra-Ferro."
Henrique acabou por consentir na troca que lhe havia sido proposta, e não tardou em se regozijar com isso.
Uma vez, estando sozinho num bosque, longe de qualquer habitação, não tendo mais nem uma só migalha de pão, exclamou:
- "Provedor! À obra!..."
Não foi preciso repetir a ordem. O cachorro partiu como uma flecha, e voltou, poucos minutos depois, trazendo um cesto cheio de excelentes provisões.
- "Bem!", disse Henrique. "Com um companheiro desta ordem, não tenho mais que me incomodar com a comida, e posso viajar em paz."
Continuou a caminhar.
Um dia encontrou uma esplêndida carruagem, puxada por dois belos cavalos, e toda pintada de negro. O cocheiro estava também vestido de preto. Dentro via-se encantadora moça, trajando luto rigorosíssimo, e chorando amargamente.
À vista dessas demonstrações de infortúnio, Henrique sentiu o coração comovido. Interrogou o cocheiro, que, a princípio, o olhou desdenhosamente, do alto da boleia, e afinal se dignou de responder:
- "Perto daqui existe um dragão terrível, que durante muito tempo devastou o país, e que finalmente se retirou para uma gruta, com a condição de, todos os anos, numa data marcada, lhe entregarem a jovem que ele escolhesse. Este ano foi a princesa a vítima designada pelo monstro. O rei e o povo estão imersos em profundíssima dor, mas é forçoso obedecer à decisão da sorte, a fim de que o monstro tenha a sua presa."
- "Pobre moça!", murmurou Henrique olhando para a princesinha com os olhos úmidos. E acompanhou a carruagem.
Chegando ao sopé de uma montanha, o cocheiro parou o carro. A rapariga desceu, e começou a subir lentamente a ladeira pedregosa. Henrique quis acompanhá-la, apesar das recomendações e dos gritos do cocheiro, que, prudentemente, havia ficado no vale.
Pelo meio da ladeira apareceu subitamente o medonho animal, com o corpo revestido de escamas, grandes asas semelhantes às de um moinho, garras mais duras que o ferro e a língua flamejante. Da guela saía-lhe um turbilhão de vapores sulfurosos. Avançou para arrebatar a presa.
Então Henrique gritou:
- "Despedaçador!... À obra! À obra..."
Despedaçador lançou-se rapidamente sobre o monstro, rasgou-lhe as carnes com os dentes, dilacerou-os e matou-o. Henrique arrancou-lhe alguns dentes, e meteu-os no bolso.
A princesa havia desmaiado. Quando recuperou os sentidos, o monstro jazia por terra. Cumprimentou Henrique , com grande transporte de alegria e gratidão, e pediu-lhe para acompanhá-la ao palácio de seu pai, de modo a ser dignamente recompensado.
O moço respondeu-lhe que iria vê-la na capital do reino, mas somente no fim de três anos, porque durante esse tempo, queria empreender muitas viagens. E, como persistisse inabalavelmente nessa resolução, a moça retomou a carruagem, e ele dirigiu-se para outro lado.
O cocheiro havia formado diabólico projeto.
Ao atravessar uma ponte, sobre um grande rio, voltou-se para a princesa, e falou-lhe:
- "O seu cavalheiro deixou-a, sem nada lhe pedir. A senhora não deve mais se ocupar dele; e, assim, pode perfeitamente fazer a fortuna de um pobre homem, dizendo a seu pai que fui eu quem matou o dragão. Se não aceitar a minha proposta, lança-la-ei ao rio, e ninguém se lembrará de perguntar o que lhe sucedeu, porque todos imaginaram que o monstro a devorou".
Em vão a mocinha protestou, pediu, rogou, suplicou. Para salvar a vida, foi obrigada a se submeter à resolução do cocheiro, e jurar solenemente que a ninguém revelaria aquela perfídia.
Gritos de prazer, exclamações de alegria irromperam em toda a cidade, quando viram regressar sã e salva, essa bela princesa, que devia servir de pasto ao terrível monstro.
Ao vê-la, o rei tomou-a nos braços e choraram ambos de alegria.
Em seguida, também apertou nos braços o pérfido cocheiro, e disse-lhe:
- "Não somente me restituíste tudo quanto tenho de mais caro no mundo, mas libertaste o país desse terrível flagelo. Devo-te uma recompensa: casar-te-ás com minha filha, dentro de um ano. Ela é muito criança ainda, para se casar antes. Desde hoje, considero-te como meu genro. Terás o teu palácio e aí viverás como um grande fidalgo."
Passado tempo, a princesa , a quem esse casamento horrorizava, e que não se atrevia a revelar o seu segredo, pediu mais um ano de espera; e um terceiro, ainda.
No fim dessa época, porém, o rei não consentiu em maior delonga, e fixou definitivamente o dia das bodas.
Na véspera desse dia, viram entrar um viajante, seguido de três cachorros extravagantes. Notando em todas as ruas preparativos de festa, perguntou a causa deles.
Responderam-lhe que a filha do rei ia desposar o homem que a havia salvo das garras do dragão.
- "Esse homem", exclamou o viajante, "é um impostor!..."
Os soldados da polícia, ouvindo-o falar daquela forma, engolfado em tristes reflexões, pareceu-lhes ouvir subitamente os gemidos dos seus cachorros.
Eram, efetivamente, os fiéis animais que se aproximavam do cárcere.
- "Quebra-Ferro, à obra!..." - exclamou.
Quebra-Ferro precipitou-se sobre as grades do xadrez, quebrou-as, e também despedaçou as algemas do amo.
O rapaz ergueu-se satisfeito, por se ver livre, mas triste por se lembrar que um traidor ia ser esposo da bela princesa.
- "Provedor, à obra!", disse ele.
Alguns minutos depois, Provedor trouxe-lhe suculentas iguarias , envoltas em um guardanapo, no qual se via bordada uma coroa real.
Havia se dirigido diretamente ao palácio. Entrara no salão de jantar, onde o soberano se achava reunido com todos os membros da sua família e os personagens da côrte.
Ao passar perto da noiva, lambeu-lhe as mãos. A princesa reconheceu-o, e foi ela mesma que arrumou o guardanapo.
O aparecimento do cão fê-la supor que o aventuroso mancebo, a quem devia a salvação, não podia estar longe.
Com essa esperança animou-se. Tomou seu pai pela mão, chamou-o de parte ao aposento vizinho, e narrou-lhe tudo quanto se havia passado no dia em que devia ser sacrificada.
O monarca mandou buscar Henrique. Era ele mesmo. A moça alegrou-se ao ver aquele belo e honesto mancebo, que se adiantou modestamente e tirou do seu saco de viagem os enormes dentes do dragão.
O rei conduziu o corajoso mancebo ao salão onde estavam reunidos os convidados. O infame cocheiro empalideceu.
Uma sentença justa condenou-o a expiar num calabouço o seu crime.
Henrique casou-se com a jovem.
No meio das festas desse feliz consórcio, lembrou-se de sua irmã, que ficara sozinha na pequena e miserável choupana. Desejou tornar a vê-la; mandou buscá-la, e abraçou-a com grande carinho e amizade.
Então, um dos seus fiéis cães, que eram encantados, tomou a palavra e disse-lhe:
- "Agora, a missão que o nosso amo nos confiou, está finda. Queríamos ver se a fortuna te endurecia o coração, e te faria esquecer a tua pobre irmã. Adeus, sê feliz!"
Ditas essas palavras, os três cães transformaram-se em passarinhos, e voaram, cantando pelos ares em fora...
FIM!
Comentários
Postar um comentário